Há 79 anos, em 25 de agosto de 1940, num dia de domingo como hoje, às 17h, falecia meu avô, CARLO BERNARDO, em sua casa na Rua Silveira da Motta, 79 (notem a coincidência do número!), Cambuci, São Paulo, vítima de caquexia (síndrome complexa e multifatorial que se caracteriza pela perda de peso, atrofia muscular, fadiga, fraqueza e perda de apetite) e, segundo o atestado de óbito, também de cirrose hepática. Há cerca de um mês antes, ele havia tomado uma simples injeção para gripe, que, para sua infelicidade, estava contaminada (ou, como se dizia, “estragada”). Os sintomas não demoraram a vir: entre tantas mazelas, sua pele descolou toda do corpo, provocando um grande sofrimento não só para ele como para todos que o cercavam. Já consciente da morte inevitável, recomendou aos filhos menores (meu pai, Fernando, e meu tio caçula, Arthur) que “ia morrer” e que se preparassem para os tempos difíceis que estavam por vir. O enterro se deu no dia 26, no Cemitério do Araçá, no jazigo da família Bernardo à quadra 43, terreno 83.
Ata do sepultamento de Carlo Bernardo, no Cemitério do Araça, em 26 de agosto de 1940
A missa de 7º dia foi celebrada no sábado seguinte, dia 31 de agosto, às 8h30, na Igreja Nossa Senhora da Glória, bairro do Cambuci, São Paulo.
Anúncio publicado no semanário dirigido à colônia Italiana Settimana Del Fanfulla da Missa de 7º dia de Carlo Bernardo, celebrada às 8h30 do dia 31 de agosto de 1940, sábado, na Igreja Nossa Senhora da Glória, Cambuci, São Paulo.
Igreja Nossa Senhora da Glória, Cambuci, São Paulo
A família inteira, incluindo as de seus irmãos já constituídas, se ressentiu enormemente da perda de seu grande esteio e referência. Meu pai, Fernando, tinha apenas 14 anos, mal saído da infância e já se empregando no Labofarma, laboratório farmacêutico muito conhecido também sediado no Cambuci, inaugurou uma vida de muito trabalho e luta. Conta minha prima Maria Rita, filha de meu tio Miguel, que este, a cada ano em que se aproximava a data da morte do pai, caía doente. O primogênito dos meus tios, Francisco (Ciccillo), já morando no Rio de Janeiro e gozando de promissora carreira musical, Foi decisivo em ajudar os irmãos a se estabelecerem no ramo dos calçados montando para eles a Indústria de Chinelos Framber (iniciais de Francisco Bernardo), sob os cuidados de Tio Miguel e Tio Hugo (ambos violonistas). Através da Framber, a família restabeleceu a tradição e vocação para os calçados e foi se reerguendo ao longo da década de 1940. A fábrica existiu até por volta da década de 1970, e vários membros da família (Tio Miguel e seu filho Carlos Bernardo Neto, Tio Giorgio Di Grazia – marido de Theodora – e os filhos José e Norberto) se dedicaram ao ramo até os anos 1990 produzindo artigos de excelente qualidade e reconhecimento do mercado. Meu pai também foi ligado ao ramo de calçados e aos negócios familiares como bem-sucedido vendedor-representante começando com a família e prosseguindo com diversas empresas importantes (Merci e Buzolin), cativando a todos com sua simpatia e carisma.
Fita adesiva da Indústria de Chinelos Framber, situada à Rua Silveira da Mota, 79
CARLO veio muito jovem de Caivano, província de Napoli, região da Campania, Italia, acompanhado do pai, Arcangelo. Começou trabalhando como ‘muratore (pedreiro)’, e, ainda muito jovem, caiu de um andaime e ficou coxo para o resto da vida. À medida em que a situação ia se consolidando por aqui, os dois pioneiros da família fizeram vir da Itália os demais membros: nossa bisavó Consilia (falecida em 1918) e seus outros filhos, nossos tios-avós Ferdinando (o mais velho, profissão negociante e residente à Rua Visconde de Parnaíba, 773), Pippinella (uma matrona vesga e mal-humorada que adorava meu irmão João Alberto em bebê, a quem ela chamava carinhosamente de Zuccarella, que significa “docinho”), Salvador (Turillo) e Umberto (o caçula dos irmãos, alfaiate sediado na Rua Libero Badaró 137 e residente à Rua da Mooca 406 casa 29).
Família Bernardo, oriunda de Caivano, província de Napoli, região da Campania, Italia, em foto de 1904, possivelmente quando todos os seus membros já haviam chegado a São Paulo. Em pé, da esquerda para a direita: meu tio-avô Umberto, filho caçula de Arcangelo e Consilia, meus bisavós; meu tio-avô Salvador (Turillo); meu avô Carlo; minha tia-avó Annunziata (Nunziatella, casada com Ferdinando, ao seu lado direito na foto) e meu tio-avô Ferdinando, o mais velho dos irmãos. Sentados, da esquerda para a direita: minha bisavó Consilia; meu tio Francisco (Ciccillo), aos dois anos de idade; minha avó Anna Farina, grávida de seu segundo filho; uma amiga da família não-identificada.
CARLO foi um exímio violonista acompanhador, atuante nas tradicionais leiterias daquele tempo e, inclusive, no cinema mudo, até 1927. Já estabelecido com sua pequena fábrica de calçados especializada em modelos para senhoras e sediada no porão da casa da família na Rua Silveira da Mota, ele não pestanejou na tentativa de apartar uma briga de navalha entre dois de seus empregados exaltados segurando firmemente a navalha com a mão esquerda, mas o dito que detinha o instrumento afiado puxou-a com tamanha força que acabou por decepar seu dedo indicador, justamente o que se incumbe das “pestanas” nas posições do violão. Num tempo em que sequer se sonhava com cirurgia de reimplante, CARLO se viu irremediavelmente obrigado a nunca mais tocar violão, e não é difícil imaginar o tamanho da decepção que isso lhe causou.
Mesmo que eu não tenha conhecido o meu avô, suas histórias e legado fizeram com que ele seja uma influência e inspiração essenciais em minha vida. Não só pelo seu exemplo de homem íntegro e empreendedor, mantenedor de sua família e até a de seus irmãos, como, obviamente, por ter sido o músico que legou a todos os Bernardo uma genética indiscutível de talento e vocação para a música e o ramo dos calçados. É uma imensa alegria para mim que não só os meus familiares como todos aqueles que apreciam histórias de família, saibam quem foi CARLO BERNARDO e se orgulhem muito dele, pois dele vem a essência do que todos nós, seus descendentes, fomos ontem, somos hoje e seremos sempre!
Fachada da residência da família Bernardo, situada à Rua Silveira da Mota, 79, Cambuci, São Paulo – o que restou da casa, já demolida. Na parte de baixo do imóvel, da direita para a esquerda, o porão que abrigava a fábrica de calçados de Carlo Bernardo (e, posteriormente, a Indústria de Chinelos Framber), com a entrada maior adulterada por murada e veneziana; porta menor de acesso ao porão, com um degrau alto na tentativa de conter as enchentes que sempre assolaram a região de várzea do Rio Tamanduateí; porta de entrada conduzindo à residência propriamente dita, na parte superior do sobrado.