Billy May 70. Jazz ou Easy Listening?

Meu caro leitor que gosta de boa música e boas histórias… me permita condividir com você um dos meus discos do coração.

Esse “Billy May ’70 (não é um título, e sim um apelido, alusivo ao “moderníssimo” sistema de gravação denominado Processo 70)” é um dos meus discos de infância e pertencia ao meu saudoso pai, que foi vendedor de discos da Odeon ao longo da década de 1950 e tinha uma discoteca incrível, que eu usufruo intensamente até os dias de hoje.

Esse disco – como todos os demais da coleção – literalmente furou de tanto eu ouvir e era um dos que animavam nossas festas de familia, quando a radiovitrola estereofônica Standard Electric 1962 (olhem só a coincidência, do mesmo ano desse LP) era transportada para o quintal de nossa casa e esse LP em particular me impressionava enormemente por seu som estereofônico impecável. Quando li o texto romantizado da contracapa, bem característico dos álbuns dessa época, vi que isso se devia ao tal do Processo 70, o que deixou a criança ainda mais intrigada.

Por volta dos meus 16 para 17 anos, comecei a desbravar os sebos de discos da capital paulista para repor os LPs danificados de nossa discoteca, com o preciosismo de que fossem com as mesmas características dos exemplares que possuíamos: prensagem, etiqueta, rótulo, se era monaural ou estereofônico, etc.

Nessa busca, fui constatando, com surpresa e desapontamento, o quanto as versões dos LPs tais quais os que possuíamos eram tão difíceis de se encontrar – o LP estéreo, então, nem se fala. Fiquei sabendo, depois, o motivo: as versões em estéreo eram prensadas em bem menor número e significativamente mais caras que as em mono.

Os rótulos dos lados A e B do LP.

Esse “Billy May 70 Mocambo Stereo” acabou vindo relativamente em pouco tempo a partir das minhas buscas, e de uma maneira muito peculiar: fiz um anúncio num jornal de anúncios da época, o Primeiramão, “fazendo um apelo (!)” a quem pudesse te-lo… e eis que me aparece esse anjo, que veio gentilmente à minha casa munido do disco, permitindo que eu efetuasse uma cópia do mesmo em fita cassete, através meu aparelho 3 em 1 National. Obviamente, eu lhe perguntei se ele abriria mão do disco, e, para a minha surpresa, ele me propôs que, caso eu conseguisse qualquer LP estereofônico do cantor norte-americano Johnny Mathis (uma de suas maiores admirações), ele me faria a troca pelo “Billy May”.

Me pergunte se, em pouco tempo, eu não dei um jeito desse disco aparecer! E até que foi fácil. Assim, deu-se a troca conforme o combinado e eu, agradecido, me tornei seu grande amigo, uma amizade cordial que perdura até os dias de hoje.

Porém, há um detalhe curioso. Apesar do disco ser o mesmo, a capa frontal tinha alguns detalhes diferentes (possivelmente até fosse a primeira versão brasileira), e, não satisfeito com esse LP que já me proporcionara uma enorme alegria, eu ainda queria uma cópia igualzinha à nossa. Ah, a memória afetiva!

E eis que, na noite de 30 de junho de 2020 – um dia que eu considero muito importante em minha vida por uma outra razão -, já madrugada do dia 1°. de julho, entrei no Mercado Livre à procura DESSE disco, e o improvável aconteceu: lá estava ele, do jeitinho que eu queria. Minha reação: fiquei inerte e proferi um interno “uau!”.

Marco Bernardo e a raríssima cópia do LP exatamente igual à possuída pela família. À direita superior, a edição original norte-americana. Abaixo, as raríssimas subedições brasileiras em versão estereofônica.

O LP estava sendo anunciado com uma estudada cortesia, como se o vendedor também tivesse apreço por ele. O que me deixou curioso em saber como ele tinha um disco tão raro, a ponto de não só lhe relatar esta novela mas fazer perguntas que ele não sabia ou não estava nem um pouco interessado em responder.

Billy May 70 Stereo versão brasileira… o típico “elefante-branco”, pois a versão monaural, que eu também já tive e vi diversas vezes em minhas andanças, tem um som pra lá de sofrível. Como o tal Processo 70 poderia ser tão pífio no universo ‘mono’?…

Não satisfeito, eu ainda persegui a versão original norte-americana estereofônica. Embora tenha constatado que o som, embora muito bom, não tinha a “profundidade” da versão nacional (percebe-se que esta foi reequalizada no estúdio próprio da recifense Fábrica de Discos Rozenblit, cuja principal etiqueta é a querida Mocambo), me vi presenteado por uma capa interna repleta de informações tratando da concepção desse álbum. Em breve, estarei acrescentando esse curioso conteúdo aqui.

Pronto, agora a mania começava a se extender às pesquisas sobre essa importante empresa discográfica que concorria pau-a-pau com, entre outras congêneres, as gigantes multinacionais sediadas na nossa região sudeste, tais como a Odeon e RCA Victor.

A extinta Fábrica de Discos Rozenblit, situada à Estrada dos Remédios 855, bairro dos Afogados, Recife, Pernambuco. Nas fotos menores, a vista aérea do parque fabril e o estúdio. Na foto maior, a fachada do prédio principal com os logos das empresas discográficas parceiras Seeco, Vogue e Time. No topo, o seu logo mais representativo e que marcou a história da discografia brasileira: Mocambo.

Elegância: razão social da Fábrica de Discos Rozenblit publicada nas contracapas dos LPs e o mix de logos de sua principal etiqueta, a Mocambo.

Enfim, caro leitor, esta foi a descrição apaixonada de uma verdadeira obsessão musical. E, para corroborar, incluo aqui as notas de encarte escritas por John Astor e publicadas na versão original americana, que, diga-se de passagem, são MUITO interessantes, não só por tratar do gênio de Billy May mas, sobretudo, da importância deste álbum para a discografia essencial do jazz e, por que não, do controverso easy listening, que uns amam e outros odeiam:

O verdadeiro teste de qualquer grande artista é o tempo. O tempo é praticamente infalível ao julgar o talento. Você já ouviu falar de sensações da noite para o dia que desaparecem tão rapidamente quanto surgem. Depois, existem outros talentos que estão no auge por alguns anos, mas sua arte limitada os alcança e eles também são deixados para trás. O artista consumado alcança alturas e permanece lá e, na verdade, melhora à medida que o tempo passa.

Billy May, um dos arranjadores mais talentosos e criativos, se encaixa perfeitamente no molde mencionado acima. Billy é um arranjador com imaginação, técnica e um senso de humor único, inigualável por qualquer outro arranjador. Os artistas que Billy apoiou magnificamente estão entre os grandes no campo da gravação – Frank Sinatra, Nat “King” Cole e Mel Tourmé, apenas para mencionar alguns. Suas brilhantes e coloridas orquestrações na famosa série “Bozo The Clown” se tornaram clássicas e são recomendadas para estudo por qualquer arranjador, seja ele novato ou profissional.

A carreira de Billy abrangeu muitos aspectos. Ele estudou o número usual de instrumentos – piano e trombone antes de se fixar no trompete. Ele começou a arranjar em uma idade precoce e aprendeu muito através da experiência prática. Suas realizações mais notáveis foram com a orquestra de Charlie Barnett – “Cherokee”, “Redskin Rhumba” e “Pompton Turnpike”. No início de sua carreira, Billy era mais conhecido por seu ótimo trabalho no trompete com a banda de Glenn Miller durante a era de ouro das big bands.

Após o fim dessa era, Billy se estabeleceu em Hollywood e fez arranjos para alguns dos maiores programas de rádio. Mesmo nessa fase inicial, Billy era um dos arranjadores mais procurados. Ele se tornou um dos arranjadores mais produtivos na Costa Oeste.

Billy May é conhecido por seu ótimo estilo swing e pelo uso excepcional das seções de metais e saxofones. Todos estão mais familiarizados com a escrita efervescente e humorística de Billy. Gosto de associar sua escrita a um improviso de Groucho Marx ou a uma interpretação maluca de Red Skelton.

Apesar de todas as tremendas realizações de Billy e de suas diferentes combinações de estilos e cores na escrita, há uma cor com a qual Billy não estava associado, e essa cor é a das cordas. Quando as cordas são mencionadas, geralmente pensamos em sons luxuriantes e preguiçosos ou em uma demonstração de força de violinos, violas e violoncelos. Por um bom tempo, Billy experimentou diferentes cores e combinações de cordas que eram criativas, originais e tinham seu toque pessoal.

A Time Records abordou Billy para fazer um álbum com ênfase nas cordas. Consciente da filosofia da Time de considerar o arranjador como o artista e de dar total liberdade ao arranjador, Billy estava muito empolgado com o álbum. Ele também ficou entusiasmado com o som brilhante da Time, um som que captura em fita tudo o que é colocado no papel. Billy também ficou satisfeito por seu álbum ser um dos primeiros a ser gravado no recém-desenvolvido PROCESS 70.

Este é o primeiro álbum de cordas que Billy May gravou, e ele traz ao ouvinte um aspecto desconhecido do gênio musical de Billy May. Billy nunca conseguiu gravar essas inovações ou, na verdade, muitas delas nunca chegaram à partitura, já que ele sempre foi chamado para arranjar para a orquestra de big band convencional. De acordo com Billy, ideias frescas para cordas ainda não foram registradas, considerando todas as possibilidades que podem ser realizadas por uma seção de cordas bem treinada.

Billy começou a trabalhar imediatamente. Ele examinou várias músicas com todos os diferentes padrões em que trabalhou no passado. Mas ele queria que isso fosse um som de cordas completamente novo e empolgante. Billy não tinha feito escrita para cordas há algum tempo, e levou algum tempo até que ele se acostumasse com o álbum. Mas uma vez que ele começou, foi como uma criança com um novo brinquedo. As ideias fluíram e ele percebeu que este seria o seu melhor álbum.

Não quero dar a entender que Billy estava copiando Mantovani ou David Rose. Billy não negligenciou seu som tradicional de big band – ele está presente – mas em uma textura secundária. O adjetivo correto é: Billy está aprimorando May.

Em “BILLY MAY IN 70”, você vai ouvir Billy em um cenário diferente e fresco, sem ignorar seu repertório musical padrão. O humor está presente, e o sentimento único de swing também está lá, mas na frente está o novo som das cordas de Billy May. No início, pode surpreendê-lo, mas ficará registrado como um dos arranjos mais inventivos dos últimos anos. Como eu disse antes, o tempo é o maior juiz do verdadeiro talento, e Billy May é um excelente exemplo. Mas a Time Records também é a maior defensora do talento criativo de arranjadores e tem orgulho de adicionar Billy May à sua brilhante equipe. O PROCESS 70 capturou cada nota, nuance, cor e entonação que Billy colocou em sua partitura, e a equipe de engenharia esgotou todos os seus talentos para gravar este álbum.

Billy, Bob Shad e Bill Putnam, o engenheiro-chefe da United Recording na Costa Oeste, chegaram pelo menos duas horas antes de cada sessão para testar cada microfone e trabalhar minuciosamente na disposição dos músicos. Este é um aspecto da gravação que muitas empresas negligenciam. A disposição dos músicos é muito importante e, mesmo durante a primeira sessão, algumas cadeiras podem ser rearranjadas. A diferença no som é surpreendente. Quando os músicos chegaram, a primeira coisa que Billy fez foi ensaiar cada seção e alcançar um equilíbrio perfeito dentro dessa seção. Em seguida, a orquestra inteira foi equilibrada, e o resto foi relativamente simples.

Acredito que você não encontrará uma seleção mais variada de músicas do que as escolhidas por Billy para o seu álbum inicial na Time Records. “OGLAN OGLAN”, um dos standards mais emocionantes no repertório greco-turco, é executado em um estilo selvagem e ardente, apresentando o cravo. Falando do humor inventivo e refrescante de Billy May, ele nunca foi tão evidente como na música “BASHFUL BILLIE”, uma interpretação animada e bem-humorada. O tema de “THE NAKED ISLAND”, um filme japonês clássico que ganhou praticamente todos os principais prêmios no exterior e logo será lançado aqui, é uma linda canção que recebe um tratamento de primeira classe de Billy.

“HANDFUL OF STARS”, a música tema do programa de rádio de Talullah Bankhead, “The Big Show”, que foi o maior programa de variedades no rádio, destaca as cores criativas das cordas de Billy. O tema de “ADVISE AND CONSENT”, um grande livro, peça e agora um filme brilhante, foi escrito por Jerry Fielding, um dos grandes arranjadores da Time Records.

“ROAD TO HONK KONG” é outro tema de um filme em ascensão e foi escrito pelo prolífico Jimmy Van Heusen. “I BELIEVE IN YOU”, o sucesso do musical da Broadway “How To Succeed in Business Without Really Trying”, recebe um tratamento virtuoso de Billy e os músicos executam sua tarefa impecavelmente.

Billy desenterrou uma das músicas de Irving Berlin, “CHANGE PARTNERS”, uma das melhores e certamente mais negligenciadas canções de pop, que está se tornando parte do repertório padrão. “PENNIES FROM HEAVEN”, uma das músicas pop mais perfeitamente construídas, recebe um tratamento fresco e revigorante de Billy, enquanto ele experimenta novas harmonias com maestria.

Quando a última nota foi registrada na fita, todos permaneceram para ouvir as reproduções. Alguns dos músicos pediram takes das sessões anteriores. Um dos maiores elogios é quando os músicos ficam após a gravação, pois geralmente saem pela porta em questão de segundos. Mas desta vez todos ficaram, pois sentiram que o álbum de Billy era um dos mais emocionantes que já tinham ouvido.Eu poderia continuar, mas “ouvir é acreditar”, e depois de ouvir “BILLY MAY IN 70”, acredito que você concordará que este álbum certamente será um marco na indústria fonográfica. A Time Records tem orgulho de adicionar este brilhante álbum ao seu catálogo e ainda mais orgulho em contar com os múltiplos talentos de Billy May em sua equipe.

Para terminar, se ao ler este texto imenso eu tiver lhe deixado curioso a ponto de investir meia hora de seu valioso tempo para conferir o conceito musical mais exuberante e bem-humorado que marcou pra sempre a vida do MARCO BERNARDO… ei-lo aqui!

Bom deleite! Viva Billy May 70!